quinta-feira, 14 de julho de 2011

meu codex burana






acontece mais aqui no campo.é muito bom ouvir música neste silêncio e amplidão.e dançar, deixar o corpo fluir com o som, como este rio que desvia das pedras cantando, movimentos espontâneos, ondas e espumas.abre uma nova percepção.lembrei daquela vez em que mme s. trouxe um cd com músicas de rituais indígenas de uma tribo da amazônia, uma pesquisa feita por uma musicista e que ela trouxera para cá em primeira mão.  s. foi fazer sauna e comecei a dançar, sentir a puberdade chegando, o ritual da primeira menstruação. quando fomos ver , era exatamente esse o ritual, o meu corpo havia captado o sentido daquela combinação de tambores e vozes.desta vez o meu corpo foi tocado pela deusa fortuna, a imperatriz do mundo, a mesma que inspirou carl orff a compor sua magnífica “cantata cênica” carmina burana. a extasiante construção musical de carl orff , as belíssimas vozes,solos e coros, fizeram  a grande teia de incontáveis vibrações que é a vida, pulsar no meu corpo, o divino no mundano, a música.muito além do que as palavras podem contar.
voltei a ouvir esta obra numa outra noite, agora sentada, com o céu abrindo todas as  suas constelações, nebulosas, via láctea sobre o chão deste vale. noite de lua minguante, apenas duas velas acesas no salão aberto que iluminaram suavemente o gramado com a potência de uma lâmpada de cem watts, sem ofuscar o que não pode deixar de ser apreciado.pensei no casal, mme.l e m. l., que tinham acabado de nos visitar mais uma vez, um presente raro,cada um deles e os dois juntos.senti de novo o perfume do divino molho de shitake que mme l. preparou com suas delicadas mãos , o gosto do vinho tinto, o calor da lareira acesa, das nossas conversas que sempre abrem novos caminhos ao livre pensar e ser e fazer, vínculos que expandem, pensei na minha filha que desde pequena sempre me leva, com suas artes e comentários,sua forma de perceber e expressar o raso e o profundo, a lugares inteiramente novos. pensei sobre o meu particular “codex burana”- como foram chamados os 200 poemas cantados, compostos  no século 14 por anônimos religiosos cristãos,somente descobertos em 1803. a história de verdade, aquela cantada pelos não vencedores, por aqueles que celebraram a vida nos bastidores,longe do poder faminto,ganancioso, especulador e manipulador, a sacralidade palpável.
a essência do meu particular codex burana resume-se na total falta de espaço interior e exterior para as mentes e corações estandartizados.tudo o mais são variações deste tema.carmina burana, como mais tarde foi chamado o codex,  é a trilha desta temporada aqui no nosso campo. somada às muitas trilhas anteriores, da cidade e do campo,time after time (ah...miles davis...), traçam uma partitura que sempre se opôs a qualquer forma de inquisição. celebrei mais uma vez da vinci, goya...e, agora,estes anônimos religiosos que não se intimidaram diante dos chamados poderosos,expressaram sua criatividade e humor.sem trair a sua particular assinatura de vida, em conexão com a vida, fazendo pulsar um sentido que faz sentido.para quem quiser se localizar na história, refletir sobre os arquétipos que dominam a si mesmo ou uma cultura (soma de todas as mentes e corações individuais), ando recomendando o prefácio de carlos bygthon no livro malleus maleficarum, que mme. e. deixou aqui e estranha eu só ter lido os prefácios, dele e de rose marie muraro, ótimo também. não, expliquei, não quero mais entrar em contato com essas aberrações, mentes perversas que se servem do conhecimento para deturpá-lo e promover o controle da energia da vida. já vi isso tudo, de diversas formas e graduações, sim, é, aquilo tudo que eu preferiria não ter visto e vivenciado mas ao mesmo tempo sinto muito orgulho disso.ter sido filha de uma mãe e pai à frente de seu tempo é uma bagagem que carrego, às vezes leve,às vezes  pesada. tanto a leveza quanto o peso só fazem com que se estreitem os laços com o que acredito ser significante e verdadeiramente enriquecedor, dispenso o ouro dos tolos, aquilo que parece mas não é.

a falta que ela nos faz




a nossa amada scottish terrier partiu,numa ensolarada e translúcida manhã de inverno, no segundo dia da lua nova, primeiro dia deste sétimo mês . despediu-se com a mesma elegância com que viveu durante 13 anos. um comportamento que tocou sempre o coração dos que a conheceram e conviveram com ela.interferiu de uma forma  positiva em todos os ambientes por onde passou, sem ocultar suas preferências e escolhas.poucas vezes aconteceu dela exibir  seus grandes caninos de terrier, sem nem precisar morder, para impedir que aqueles com quem não desejava conviver, gatos ou  alguns machos a quem não autorizara que xeretassem suas partes íntimas,invadissem o terreno de sua vida.ela tinha timing.as pessoas a quem tenho chamado de 0800 ambulante , ela ignorava, ou melhor, não permitia que afetassem sua energia.” deixe que ela vai escolher o momento certo de partir”,disse m. l. ,quando lhe contei sobre o diagnóstico do veterinário,  quem sabe pra voltar gente...ah, será que voltar gente é realmente evolução?dá para crer que  o ser humano é superior a todas as outras formas de vida por ser o único que tem consciência sobre si e o outro? não acredito nisso não. uma grande maioria de seres humanos não tem consciência nem sobre si mesmo ,o que dirá sobre o outro e só desequilibra a natural harmonia do meio ambiente. ela tinha inteligência emocional e espiritual. ah!!! dirão alguns, um cão tem inteligência espiritual...o que é inteligência espiritual??? e eu digo: é a soma de sentimentos que se traduzem em conduta. é conhecer e dominar a linguagem do coração.  ela dominava a linguagem do coração. lembrei agora da adélia prado falando que as mulheres possuem um radar de sintonia fina mas também há homens assim e mulheres desprovidas deste aparelho.  há também animais que possuem um radar de sintonia fina e gente que não.há gente que consegue , até  através de um telefonema, passar e deixar somente ausência de vida. ela deixou uma transbordante gratidão em meu coração,por tão rica convivência e doação.pensei nessa energia linda que vivia pulsando naquele corpinho que andava rebolando, suas patinhas de trás como os pés endehors de uma bailarina, no seu comportamento e reações  sempre tão sábias, personalidade sensível,  alma chique.não tinha nada de submissa muito menos de bajuladora. naturalmentecarismática.nunca esquecerei aqueles olhos tão eloquentes.depois de mais uma noite à beira da lareira, adormecemos . ela me acordou balbuciando algo,acendi o abajur e , já fraquinha, girou o pescoço com firme  decisão efixou os seus olhos nos  meus, emitiu um som diferente e se foi, suspirou languida no colo do meu marido.na hora nem chorei, fiquei fazendo carinho nela e agradecendo, cantamos o mantra que ela amava ouvir, fizemos declarações de amor.fiquei acariciando o seu corpo quentinho.ànoite sim, chorei muito, falei um monte, em voz altadisse: volta gente não, gente faz muito estrago. a escolha é sua, claro, mas agora te vejo um condor.voa, minha linda, sua energia me marcou, a saudade é de quem foi amada e amou e aproveitou.obrigada, minha querida, por todos esses anos de tão especial e enriquecedora, significante companhia.agora a lua entrou em fase crescente. deito na grama sobre o pano indiano que compartilhávamos, entre o sol e a lua, a tarde está clara, pode-se ver as montanhas lá longe.não choro. a saudade dela preenche o meu coração com plenitude.mais uma vez agradeço termos vivido nosso tempo com qualidade.ainda deitada sobre o pano indiano,olho para o vaso na varanda e a vejo naquela manhã, há pouco tempo,quando um passarinho adolescente bateu a cabeça no vidro da janela e caiu tontinho no chão. quando acordei, meu marido estava cuidando do passarinho, dando água com açúcar para ele e depois passando gelo na cabecinha dele.ele se recuperou mas não voava, ficou sentadinho, parado. examinei as asas, percebi que estavam inteiras. então tive uma idéia, lembrei de uma cabalista inglesa que disse que essa inteligência, a que alguns chamam de deus, é pressão. chamei nossa scottish e ela cheirou a cabeça do passarinho com o maior cuidado e carinho, compreendeu a minha proposta, e ele voou cheio de energia. era apenas medo de quem ainda é  inexperiente, está aprendendo a voar. sim. m. l., ela escolheu o momento de abandonar aquele corpinho charmoso e expandir o seu vôo.às vezes até acho que ela adiou um pouquinho a sua partida vendo o meu olhar cheio de apego. até que um dia a abracei e olhando bem nos seus olhos ,lhe transmiti todo o amor que sentíamos por ela, que não acaba aqui. disse-lhe: reage ou descansa. hoje acordei, a casa está vazia. vejo seus olhos nos meus, o rabinho dela abana feliz , faz cócegas no meu coração. 



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