para minha filha,uma história real sobre as mulheres da nossa família,para que continuemos a tecer esse tecido feito das nossas histórias,cheio de bordados e vazios que não rasgam, onde não cabem traças nem cupins, nem precisa colocar bolinhas de naftalina, os baús estão abertos e vivos.e isso é o suficiente:
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
o que é suficiente
para minha filha,uma história real sobre as mulheres da nossa família,para que continuemos a tecer esse tecido feito das nossas histórias,cheio de bordados e vazios que não rasgam, onde não cabem traças nem cupins, nem precisa colocar bolinhas de naftalina, os baús estão abertos e vivos.e isso é o suficiente:
ela era uma mulher bonita, vaidosa e consciente sobre valores humanos, vivendo num mundo ainda dominado pelos homens.já tinha tido seis filhos, três homens e três mulheres.quando a grande guerra começou,ela era viúva de um homem por quem foi muito apaixonada,um marido com quem construiu uma vida e uma fábrica de tecidos que exportava, já naquela época, para o berço da indústria de tecidos, inglaterra e bélgica.ele, apesar de ninguém fazer isso, dividia, naquele país pequeno, os lucros com os funcionários de acordo com a produtividade.
agora,todos os filhos estavam casados, alguns com bebês e crianças pequenas.
menos sua filha caçula, temporona, uma jovem super loira que gostava de criar seus próprios vestidos e chamava a atenção de todos.uma casa bonita ao lado do palácio.uma mulher viúva e sua jovem filha.guerra.a pequena fazenda, em que seu marido instalara caixas de som nas árvores, para as vacas pastarem ao som de mozart e bach, ocupada.os empregados chegaram a fugir de madrugada, carregando leite, queijos, frutas e legumes até a casa da cidade para implorar à viúva que os acolhesse, não queriam trabalhar para os novos patrões,desconheciam e não suportavam tamanho mau trato.a viúva se comovia e implorava para que eles voltassem e procurava fazê-los compreender que seu maior desejo era preservar a vida, sobreviver junto com eles a todos os horrores e violências que uma guerra pode gerar.
certa noite, sete oficiais de alta patente ocuparam a casa para pernoitar. a viúva ficou muito preocupada com ela e com a filha. os oficiais foram elegantes, não houve assédio,despediram-se sem importunar as duas mulheres sós.
na segunda vez,gente do povo lá do norte do extremo do mundo, invadiu a casa da viúva em busca do filho foragido que lutava contra toda essa ocupação tão violenta.a menina foi levada e presa e torturada,ficou semanas numa cela sob uma temperatura de vinte graus negativos, para forçar a confissão de onde andava o seu irmão.ao ser levada, ouviu a mãe berrando na porta: morra mas não seja dedo duro.na terceira vez, a menina voltava de bicicleta para casa quando encontrou a mãe cercada por homens rudes, desses que cospem no chão, fungam e fazem xixi no poste da rua.eles tinham acabado de riscar com canivete uma face do relógio-jóia que ela guardava de lembrança, colado aos seios numa corrente,de uma viagem de seu marido. os ignorantes nunca tinham visto um relógio na vida, nem sabiam que isso existia, um aparelho para medir as horas, e o arrancaram de seu pescoço.como não conseguiam abrir para ver os ponteiros e números que ela contava ter, eles nem sabiam o que era isso, riscaram todo o trabalho de arte em esmalte, um pequeno mandala de louros em verde esmeralda.a viúva explicava e explicava e explicava, mas eles achavam que ela carregava uma bomba no pescoço. a tudo o que não conheciam chamavam de sabotagem.assim que a menina se aproximou, eles a arrancaram da bicicleta e exigiram explicações, disseram: como pode uma pessoa andar sobre duas rodas, isso é boicote! a menina, sob o olhar firme da mãe, explicou do que se tratava, eles nunca tinham visto uma bicicleta e achavam que era uma arma.com armas apontadas sobre a sua cabeça, a menina teve que deixar um deles experimentar. ele disse: se não funcionar , eu te mato, você está tentando me enganar. a menina explicou que para andar e não cair precisava aprender.ele andou e caiu. a menina continuou explicando e explicando e explicando, com toda a sua voz e vida, o que ela sabia que era verdade. eles se foram. a bicicleta ficou. a casa, a fazenda, as jóias, tudo ficou para trás.o relógio acompanhou as duas mulheres que foram para uma terra próxima e depois para uma outra muito distante. a menina casou, teve uma filha.o tempo passou. tantas mulheres na família e o relógio ficou com a única filha de sua filha temporã. até hoje ele não bate as horas.um dos ponteiros foi arrancado pelos ignorantes e a viúva nunca quis consertar, quis guardá-lo assim para não esquecer do que os homens são capazes, de criar o belo e o horroroso.ela continuou usando o relógio junto aos seios.nunca mais quis aprender nenhuma nova língua,apreciou a beleza e as pessoas dos novos países através de sorrisos, receitas saborosissimas e lindos trabalhos em crochê. e caras feias também.a neta aprendeu a sua língua para poder se comunicar com aquela linda mulher.e ficou com a jóia, aquilo que ninguém tira.
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